15.10.08

Assuma a posição!



Uma história de amor! Desconcertante, bizarra (em alguns pontos de vista), inusitada, mas incrivelmente romântica. O enredo do filme Secretária (2002) de Steven Shainberg (mesmo diretor de A Pele) pode ser resumido (ou reduzido) a isso. Com uma escolha de tema polêmico e atores excepcionais em seus papéis, o longa trata questões como auto-flagelo, sado-masoquismo, alcoolismo, neuroses e as mais profundas erupções da alma humana com um estilo doce, carinhoso e apaixonante.

A primeira cena do filme é estonteante. Os olhos viajam por uma imagem pictórica, um cenário colorido e charmoso, digno de palácios de contos de fadas, por onde desfila Lee Holloway (personagem de Maggie Gyllenhaal). A elegância do andar, do olhar e do “flutuar” pelos corredores do recinto é contrastada com a rudeza das correntes que prendem seus braços - como uma cruz. Lee efetua seu trabalho: Secretária. Ao fechar a porta no fim do corredor o filme passa para um flash-back e as dúvidas vão começar a ser esclarecidas, ou somadas. Shainberg vai brincar com a cabeça, com o corpo e com o coração de quem assiste... com a sociedade que retrata e a qual se dirige.


Saindo de um hospital psiquiátrico, a franzina, esquisita e aparentemente frágil e assustada Lee volta para casa. A família da moça é apresentada logo de cara. A mãe histérica (Lesley Ann Warren), o pai alcoólatra (Stephen McHattie) e a irmã (Amy Locane) que se casa e continua na casa dos pais. Durante a festa de casamento iremos descobrir a primeira dica sobre a enigmática figura de Lee. Envolta por um cenário cheio de cores e contrastes (que acaba trazendo à memória um pouco das construções de Almodóvar), a percepção de que o pai está novamente bêbado leva a moça a subir para o quarto. Incrivelmente infantil, o cômodo é recoberto por roxos e rosas, bibelôs e brinquedos. Embaixo da cama está a caixinha, bordada com borboletas e bailarinas. Lee, delicadamente, abre a caixa e observamos diversos objetos pontiagudos e cortantes. Ela escolhe um e pressiona contra a perna. Lee precisa se auto-flagelar. Mas isso é apenas a introdução de algo muito maior.


Lee decide procurar um emprego. E após fazer um curso de datilografia o trabalho de secretária parece ser o ideal. Guiada por anúncios em jornais, a personaagem vai trabalhar no escritório do Dr. E. Edward Grey (James Spader). O advogado é obcecado com organização, perfeccionismo e limpeza! Quando Lee chega ao seu escritório para uma entrevista (trajando uma capa de chuva que lembraria a chapeuzinho vermelho, se não fosse roxo) ela cruza com uma moça indo embora com o aspecto de quem tinha chorado. O interior do recinto está todo bagunçado e após conversar com Gray sobre a vaga ela é admitida. Chapeuzinho entrou na casa da vovó e não percebeu que ela era o lobo mau. Ou percebeu....


Enquanto se esforça para agradar o chefe e manter o emprego, Lee mantém um relacionamento com um antigo amigo de escola Peter (Jeremy Davies) e procura amenizar a dor ao ver o pai se entregando ao alcoolismo com seções de auto-flagelo.


Mas no escritório Gray vai se tornando cada vez mais sádico e exigente com ela. E aos poucos o diretor Shainberg vai delineando a personalidade do advogado. Suas seções de exercícios físicos, seu cultivo de flores e seus cuidados com as canetinhas vermelhas. O enredo vai colocando Lee e Gray cada vez mais unidos e mais distantes do resto dos personagens. O lobo mau vai se tornando um objeto de obsessão e exemplo. Seguindo seus conselhos Lee passa a tornar-se dona de si mesma, ele a “permite” voltar pra casa sozinha (e não mais com a mãe), ele recrimina suas roupas e suas manias. Dessa forma, a secretária vai transformando-se, de início desengonçada a charmosa e sensual. Com Gray, Lee não precisa mais flagelar-se.




O ápice do filme se inicia em uma das correções de Gray a um texto datilografado por Lee. Após usar as canetinhas vermelhas para circular o erro ele a chama. “Assuma a posição!” Lee fica debruçada sobre a mesa e, a pedido do advogado, começa a ler o texto em voz alta. Á medida que ela lê, ele vai lhe dando palmadas nas nádegas, cruelmente. Como um pai a um filho, como o dono a um animal desobediente, como o chefe ao empregado. Está criado e laçado o encontro entre os dois, o pacto que os unirá. O medo de Lee se confunde com o seu próprio desejo. Sádico e masoquista descobrem-se sem planejar. Como homem e mulher!

A partir daí o Sr. Gray povoará os sonhos de Lee. Seu namoro com Peter não trará, para ela, prazer algum, apenas comparações (destaque para a cena em que Lee tenta fazer com que Peter a bata, mas ele não entende e tenta transar com ela).





As peripécias entre o casal vão se estendendo às mais variadas fantasias que, no entanto, não demonstram (ainda) aspectos sexuais. Os dois se desejam e nesse convívio a secretária começa a provocar os erros de digitação para ser “tocada” pelo chefe. Eles estão envolvidos, mas Gray não consegue conceber esse tipo de relação e foge – em busca de outro corpo para explorar e não se sentir culpado. Brigando contra sua própria natureza.

Abandonada e saindo do escritório como outrora havia visto a outra moça, Lee desmorona. Percebe-se apaixonada por Gray e ciente do tipo de relação que a dá prazer. Nessa trajetória ela busca encontrar outros “amantes” ao seu modo, mas nenhum que a encaixe. Ela vai rumando ao fim, trilhando os passos de Shainberg, que guia também Spader e seu personagem.


Maravilhosamente composto pela trilha sonora e fotografias estonteantes e envolventes, Secretária é um filme com final feliz. Não há uma intenção de solucionar ou romantizar o final, mas de naturalizar. O importante é a percepção de que não se pode estabelecer juízos de valor sobre o relacionamento de Lee e Gray, apenas naturalizá-lo, como um romance estranho, difícil, cheio de altos e baixos, como qualquer outro.


Se o olhar de Maggie Gyllenhaal para a câmera, no fim, não demonstra a realização ou felicidade plena, isso não diminui em nada o processo de aceitação de si mesma, de doação ao outro e de auto-conhecimento que a personagem passou. Não deixa de mostrar como é possível encontrar-se a si mesmo em outro e dividir as mais profundas intimidades. Define a construção das relações sociais (e amorosas) da atualidade, do mundo no qual vivemos hoje. Revela a procura infinita pelo amor e pela “outra metade”. É como se Shainberg quisesse dizer “Tudo bem, ela não está totalmente feliz. Mas quem está?”


Certamente, Secretária é um filme imperdível! O que poderia ser bizarro e ridículo foi tocado com tamanha maestria e sensibilidade que pode fazer chorar. É um filme para se ver com a mente e coração abertos. É entender que sexualidade está em cada um e não em conceitos.



Publicado por Talita.


“Assuma a posição!”




Outras Críticas: 1, 2, 3.

Assista ao trailler do filme:



1.10.08

Entre, além e através das convenções sexuais (Parte II)


Aprecie trecho do filme "La Luna"!
Postado por: Bárbara e Talita

Assistam! Afinal, voyerismo é participação... (Parte II)


Nova Iorque não poderia ser mais sensível, se não pós 11 de setembro. Costumeiramente chamada de “a cidade da liberdade”, a nova Iorque se configura também por vislumbrar sua, sim, possível finitude, principalmente após a queda das torres gêmeas, e conseqüentemente, dos valores da sociedade norte-americana.

Shortbus, novo filme do diretor John Cameron Mitchell (Hedwig and the Angry Inch), tem como plano de fundo a plasticidade novaiorquina, muito bem representada pelo panorama colorido de prédios iluminados produzidos digitalmente na introdução do filme. Maravilhosamente decorada pela música Is you is or is you ain’t my Baby? na voz de Anita O’day.
Cores, sons, luz, e muito sexo, ou melhor, sexualidade. O diretor deixa bem claro o objetivo de seu longa na primeira cena, mostrando, através de recortes, a Estátua da Liberdade: boca, mãos, pés, olhos, cavidades e superfícies fálicas...
Mas o que seria ShortBus? O nome é baseado nos famosos ônibus escolares americanos. Na frase de um personagem, enquanto aquele é o grande ônibus amarelo, o clube underground seria o pequeno. ShortBus é o lugar aonde estão juntos os dotados e os desajeitados, que buscam, tão além de sexo, uma identidade. São pessoas diferentes, com anseios distintos, mas que se apropriam daquele espaço como uma válvula de escape. Heterossexuais, Homossexuais, Bissexuais, estão presentes em Shortbus, representando muito mais do que meros personagens, mas identidades reais de Nova Iorque, que sabem que tudo pode acabar a qualquer instante.

Ainda na introdução a câmera passeia pelos apartamentos, tão irreais em sua digitalidade, mas não menos bonitos de se ver. Dentro dos cômodos os personagens são apresentados sem cerimônias, no que poderíamos chamar de seus “momentos mais íntimos”. As cenas são de chocar os olhos mais adestrados. A nudez, o sexo, o sado-masoquismo. A sexualidade. Nua e crua, no seu sentido mais carnal. A aceleração do ritmo da música é também a aceleração do ritmo dos corpos, dos suspiros, dos gritos, do esforço. Em uma dinâmica que termina no gozo, porém, um gozo triste, obtido no extremo limiar entre o prazer e a dor. Extraído do choro da personagem James (interpretado por Paul Dawson) - de longe observado por um “vizinho”, do “easy, easy” (devagar, devagar) da personagem Sophia (Sook-yie Lee) e da conversa entre a Dominatrix Severin (Lindsay Beamish) e seu cliente “Você se sente triste depois? – Sim. Porque o tempo não parou e eu não estava sozinha”.

Michell já expõe aí seu jogo, mostra suas cartas para que o espectador decida entrar no jogo ou não. Mas, talvez o diretor tenha realizado um grande blefe... e porquê?

A partir daí o filme irá desenvolver sua trama e envolver ainda mais as personagens. Saberemos que James é homossexual e que namora Jamie (PJ De Boy) há alguns anos, e que os dois não tem um relacionamento tão perfeito quanto aparenta. Sophia, que protagoniza uma cena de sexo invejável é uma terapeuta sexual (que prefere ser chamada de “conselheira de casais”) e nunca teve um orgasmo. E, Severin, nunca conseguiu ter um relacionamento duradouro ou pelo menos importante.
Neste ponto saímos do âmbito aprisionador do sexo e passamos a discutir sexualidade. E John Cameron Michell vira o jogo! Shortbus não é um filme de pornografia e nem quer falar exclusivamente de sexo. Shortbus é uma celebração, um vislumbrar e um naturalizar a sexualidade!
As frustrações, os desejos, a irrealidade de suas próprias vidas leva as personagens ao “bar” chamado Shortbus, cuja figura central é certamente Justin Bond, o/a recepcionista.
Um lugar onde não é preciso fingir (a não ser que queira), dissimular ou evitar. O ambiente propício para realizar desejos, fugir do mundo, encontrar amigos e, o mais importante, encontrar-se. Entre os cômodos é possível ver filmes, ouvir músicas, brincar, usar drogas, conversar e, porque não, transar. Justin Bond explica bem: “É como na década de 60, mas com menos esperança!”.


Esse cenário é envolto em uma naturalidade nas relações entre as pessoas que parece ser inacreditável existir uma realidade assim. Nesse momento o ator Alan Mandell, que interpreta o ex-prefeito de Nova Iorque, surge com o mais belo diálogo do filme e apresenta o termo (crucial ao filme) “Permeabilidade”.
As tentativas de resolução dos problemas de cada personagem são cada vez mais frustradas e o espectador consegue ir percebendo que todos estão ligados por um problema único: a incapacidade de sentir. James nunca se deixou ser penetrado, Sophia considera o orgasmo uma mentira, Severin procura um relacionamento estável. Todos vão se afundando em seus próprios problemas e encontrando a semelhança de suas dores nos outros. Na fala de Severin “É difícil não sentir nada na vida, não é?”
Shortbus é uma celebração, como já dissemos antes. À vida, à sexualidade, ao amor. É o lugar onde todos vão encontrar não a solução de seus problemas, mas algumas portas ou janelas – algumas conexões e alguns curtos circuitos. Um lugar onde se aprende a ser permeável – deixando entrar o novo e o velho. A charmosa e desejável luz de velas quando todo o resto parece estar escuro.





and as your last breath begins
you find your demon's your best friend
and we all get it in
the end


(Scott Mattew – In the end)



Destaque para: Trilha Sonora
Construção do filme
Outras críticas: 1, 2.


Postado por: Bárbara, Talita e Geanini