Uma história de amor! Desconcertante, bizarra (em alguns pontos de vista), inusitada, mas incrivelmente romântica. O enredo do filme Secretária (2002) de Steven Shainberg (mesmo diretor de A Pele) pode ser resumido (ou reduzido) a isso. Com uma escolha de tema polêmico e atores excepcionais em seus papéis, o longa trata questões como auto-flagelo, sado-masoquismo, alcoolismo, neuroses e as mais profundas erupções da alma humana com um estilo doce, carinhoso e apaixonante.
A primeira cena do filme é estonteante. Os olhos viajam por uma imagem pictórica, um cenário colorido e charmoso, digno de palácios de contos de fadas, por onde desfila Lee Holloway (personagem de Maggie Gyllenhaal). A elegância do andar, do olhar e do “flutuar” pelos corredores do recinto é contrastada com a rudeza das correntes que prendem seus braços - como uma cruz. Lee efetua seu trabalho: Secretária. Ao fechar a porta no fim do corredor o filme passa para um flash-back e as dúvidas vão começar a ser esclarecidas, ou somadas. Shainberg vai brincar com a cabeça, com o corpo e com o coração de quem assiste... com a sociedade que retrata e a qual se dirige.
Saindo de um hospital psiquiátrico, a franzina, esquisita e aparentemente frágil e assustada Lee volta para casa. A família da moça é apresentada logo de cara. A mãe histérica (Lesley Ann Warren), o pai alcoólatra (Stephen McHattie) e a irmã (Amy Locane) que se casa e continua na casa dos pais. Durante a festa de casamento iremos descobrir a primeira dica sobre a enigmática figura de Lee. Envolta por um cenário cheio de cores e contrastes (que acaba trazendo à memória um pouco das construções de Almodóvar), a percepção de que o pai está novamente bêbado leva a moça a subir para o quarto. Incrivelmente infantil, o cômodo é recoberto por roxos e rosas, bibelôs e brinquedos. Embaixo da cama está a caixinha, bordada com borboletas e bailarinas. Lee, delicadamente, abre a caixa e observamos diversos objetos pontiagudos e cortantes. Ela escolhe um e pressiona contra a perna. Lee precisa se auto-flagelar. Mas isso é apenas a introdução de algo muito maior.
Lee decide procurar um emprego. E após fazer um curso de datilografia o trabalho de secretária parece ser o ideal. Guiada por anúncios em jornais, a personaagem vai trabalhar no escritório do Dr. E. Edward Grey (James Spader). O advogado é obcecado com organização, perfeccionismo e limpeza! Quando Lee chega ao seu escritório para uma entrevista (trajando uma capa de chuva que lembraria a chapeuzinho vermelho, se não fosse roxo) ela cruza com uma moça indo embora com o aspecto de quem tinha chorado. O interior do recinto está todo bagunçado e após conversar com Gray sobre a vaga ela é admitida. Chapeuzinho entrou na casa da vovó e não percebeu que ela era o lobo mau. Ou percebeu....
Enquanto se esforça para agradar o chefe e manter o emprego, Lee mantém um relacionamento com um antigo amigo de escola Peter (Jeremy Davies) e procura amenizar a dor ao ver o pai se entregando ao alcoolismo com seções de auto-flagelo.
Mas no escritório Gray vai se tornando cada vez mais sádico e exigente com ela. E aos poucos o diretor Shainberg vai delineando a personalidade do advogado. Suas seções de exercícios físicos, seu cultivo de flores e seus cuidados com as canetinhas vermelhas. O enredo vai colocando Lee e Gray cada vez mais unidos e mais distantes do resto dos personagens. O lobo mau vai se tornando um objeto de obsessão e exemplo. Seguindo seus conselhos Lee passa a tornar-se dona de si mesma, ele a “permite” voltar pra casa sozinha (e não mais com a mãe), ele recrimina suas roupas e suas manias. Dessa forma, a secretária vai transformando-se, de início desengonçada a charmosa e sensual. Com Gray, Lee não precisa mais flagelar-se.
O ápice do filme se inicia em uma das correções de Gray a um texto datilografado por Lee. Após usar as canetinhas vermelhas para circular o erro ele a chama. “Assuma a posição!” Lee fica debruçada sobre a mesa e, a pedido do advogado, começa a ler o texto em voz alta. Á medida que ela lê, ele vai lhe dando palmadas nas nádegas, cruelmente. Como um pai a um filho, como o dono a um animal desobediente, como o chefe ao empregado. Está criado e laçado o encontro entre os dois, o pacto que os unirá. O medo de Lee se confunde com o seu próprio desejo. Sádico e masoquista descobrem-se sem planejar. Como homem e mulher!
A partir daí o Sr. Gray povoará os sonhos de Lee. Seu namoro com Peter não trará, para ela, prazer algum, apenas comparações (destaque para a cena em que Lee tenta fazer com que Peter a bata, mas ele não entende e tenta transar com ela).
As peripécias entre o casal vão se estendendo às mais variadas fantasias que, no entanto, não demonstram (ainda) aspectos sexuais. Os dois se desejam e nesse convívio a secretária começa a provocar os erros de digitação para ser “tocada” pelo chefe. Eles estão envolvidos, mas Gray não consegue conceber esse tipo de relação e foge – em busca de outro corpo para explorar e não se sentir culpado. Brigando contra sua própria natureza.
Abandonada e saindo do escritório como outrora havia visto a outra moça, Lee desmorona. Percebe-se apaixonada por Gray e ciente do tipo de relação que a dá prazer. Nessa trajetória ela busca encontrar outros “amantes” ao seu modo, mas nenhum que a encaixe. Ela vai rumando ao fim, trilhando os passos de Shainberg, que guia também Spader e seu personagem.
Maravilhosamente composto pela trilha sonora e fotografias estonteantes e envolventes, Secretária é um filme com final feliz. Não há uma intenção de solucionar ou romantizar o final, mas de naturalizar. O importante é a percepção de que não se pode estabelecer juízos de valor sobre o relacionamento de Lee e Gray, apenas naturalizá-lo, como um romance estranho, difícil, cheio de altos e baixos, como qualquer outro.
Se o olhar de Maggie Gyllenhaal para a câmera, no fim, não demonstra a realização ou felicidade plena, isso não diminui em nada o processo de aceitação de si mesma, de doação ao outro e de auto-conhecimento que a personagem passou. Não deixa de mostrar como é possível encontrar-se a si mesmo em outro e dividir as mais profundas intimidades. Define a construção das relações sociais (e amorosas) da atualidade, do mundo no qual vivemos hoje. Revela a procura infinita pelo amor e pela “outra metade”. É como se Shainberg quisesse dizer “Tudo bem, ela não está totalmente feliz. Mas quem está?”
Certamente, Secretária é um filme imperdível! O que poderia ser bizarro e ridículo foi tocado com tamanha maestria e sensibilidade que pode fazer chorar. É um filme para se ver com a mente e coração abertos. É entender que sexualidade está em cada um e não em conceitos.
Publicado por Talita.
Outras Críticas: 1, 2, 3.
Assista ao trailler do filme:
A primeira cena do filme é estonteante. Os olhos viajam por uma imagem pictórica, um cenário colorido e charmoso, digno de palácios de contos de fadas, por onde desfila Lee Holloway (personagem de Maggie Gyllenhaal). A elegância do andar, do olhar e do “flutuar” pelos corredores do recinto é contrastada com a rudeza das correntes que prendem seus braços - como uma cruz. Lee efetua seu trabalho: Secretária. Ao fechar a porta no fim do corredor o filme passa para um flash-back e as dúvidas vão começar a ser esclarecidas, ou somadas. Shainberg vai brincar com a cabeça, com o corpo e com o coração de quem assiste... com a sociedade que retrata e a qual se dirige.
Saindo de um hospital psiquiátrico, a franzina, esquisita e aparentemente frágil e assustada Lee volta para casa. A família da moça é apresentada logo de cara. A mãe histérica (Lesley Ann Warren), o pai alcoólatra (Stephen McHattie) e a irmã (Amy Locane) que se casa e continua na casa dos pais. Durante a festa de casamento iremos descobrir a primeira dica sobre a enigmática figura de Lee. Envolta por um cenário cheio de cores e contrastes (que acaba trazendo à memória um pouco das construções de Almodóvar), a percepção de que o pai está novamente bêbado leva a moça a subir para o quarto. Incrivelmente infantil, o cômodo é recoberto por roxos e rosas, bibelôs e brinquedos. Embaixo da cama está a caixinha, bordada com borboletas e bailarinas. Lee, delicadamente, abre a caixa e observamos diversos objetos pontiagudos e cortantes. Ela escolhe um e pressiona contra a perna. Lee precisa se auto-flagelar. Mas isso é apenas a introdução de algo muito maior.
Lee decide procurar um emprego. E após fazer um curso de datilografia o trabalho de secretária parece ser o ideal. Guiada por anúncios em jornais, a personaagem vai trabalhar no escritório do Dr. E. Edward Grey (James Spader). O advogado é obcecado com organização, perfeccionismo e limpeza! Quando Lee chega ao seu escritório para uma entrevista (trajando uma capa de chuva que lembraria a chapeuzinho vermelho, se não fosse roxo) ela cruza com uma moça indo embora com o aspecto de quem tinha chorado. O interior do recinto está todo bagunçado e após conversar com Gray sobre a vaga ela é admitida. Chapeuzinho entrou na casa da vovó e não percebeu que ela era o lobo mau. Ou percebeu....
Enquanto se esforça para agradar o chefe e manter o emprego, Lee mantém um relacionamento com um antigo amigo de escola Peter (Jeremy Davies) e procura amenizar a dor ao ver o pai se entregando ao alcoolismo com seções de auto-flagelo.
Mas no escritório Gray vai se tornando cada vez mais sádico e exigente com ela. E aos poucos o diretor Shainberg vai delineando a personalidade do advogado. Suas seções de exercícios físicos, seu cultivo de flores e seus cuidados com as canetinhas vermelhas. O enredo vai colocando Lee e Gray cada vez mais unidos e mais distantes do resto dos personagens. O lobo mau vai se tornando um objeto de obsessão e exemplo. Seguindo seus conselhos Lee passa a tornar-se dona de si mesma, ele a “permite” voltar pra casa sozinha (e não mais com a mãe), ele recrimina suas roupas e suas manias. Dessa forma, a secretária vai transformando-se, de início desengonçada a charmosa e sensual. Com Gray, Lee não precisa mais flagelar-se.
O ápice do filme se inicia em uma das correções de Gray a um texto datilografado por Lee. Após usar as canetinhas vermelhas para circular o erro ele a chama. “Assuma a posição!” Lee fica debruçada sobre a mesa e, a pedido do advogado, começa a ler o texto em voz alta. Á medida que ela lê, ele vai lhe dando palmadas nas nádegas, cruelmente. Como um pai a um filho, como o dono a um animal desobediente, como o chefe ao empregado. Está criado e laçado o encontro entre os dois, o pacto que os unirá. O medo de Lee se confunde com o seu próprio desejo. Sádico e masoquista descobrem-se sem planejar. Como homem e mulher!
A partir daí o Sr. Gray povoará os sonhos de Lee. Seu namoro com Peter não trará, para ela, prazer algum, apenas comparações (destaque para a cena em que Lee tenta fazer com que Peter a bata, mas ele não entende e tenta transar com ela).
As peripécias entre o casal vão se estendendo às mais variadas fantasias que, no entanto, não demonstram (ainda) aspectos sexuais. Os dois se desejam e nesse convívio a secretária começa a provocar os erros de digitação para ser “tocada” pelo chefe. Eles estão envolvidos, mas Gray não consegue conceber esse tipo de relação e foge – em busca de outro corpo para explorar e não se sentir culpado. Brigando contra sua própria natureza.
Abandonada e saindo do escritório como outrora havia visto a outra moça, Lee desmorona. Percebe-se apaixonada por Gray e ciente do tipo de relação que a dá prazer. Nessa trajetória ela busca encontrar outros “amantes” ao seu modo, mas nenhum que a encaixe. Ela vai rumando ao fim, trilhando os passos de Shainberg, que guia também Spader e seu personagem.
Maravilhosamente composto pela trilha sonora e fotografias estonteantes e envolventes, Secretária é um filme com final feliz. Não há uma intenção de solucionar ou romantizar o final, mas de naturalizar. O importante é a percepção de que não se pode estabelecer juízos de valor sobre o relacionamento de Lee e Gray, apenas naturalizá-lo, como um romance estranho, difícil, cheio de altos e baixos, como qualquer outro.
Se o olhar de Maggie Gyllenhaal para a câmera, no fim, não demonstra a realização ou felicidade plena, isso não diminui em nada o processo de aceitação de si mesma, de doação ao outro e de auto-conhecimento que a personagem passou. Não deixa de mostrar como é possível encontrar-se a si mesmo em outro e dividir as mais profundas intimidades. Define a construção das relações sociais (e amorosas) da atualidade, do mundo no qual vivemos hoje. Revela a procura infinita pelo amor e pela “outra metade”. É como se Shainberg quisesse dizer “Tudo bem, ela não está totalmente feliz. Mas quem está?”
Certamente, Secretária é um filme imperdível! O que poderia ser bizarro e ridículo foi tocado com tamanha maestria e sensibilidade que pode fazer chorar. É um filme para se ver com a mente e coração abertos. É entender que sexualidade está em cada um e não em conceitos.
Publicado por Talita.
“Assuma a posição!”
Outras Críticas: 1, 2, 3.
Assista ao trailler do filme: